Entrevista com Tomasz Konicz -Ucrânia: o “Grande Jogo”

por Marcos Barreira [1]
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Tomasz Konicz, que lança em agosto o pela Consequência Editora o livro Ucrânia: o “Grande Jogo”. A luta pelo poder entre o Leste e o Ocidente na crise global, conversou por email com Marcos Barreira para o Blog da Consequência. O livro reúne 20 textos publicados em revistas e jornais da Alemanha, entre 2014 e os primeiros meses da guerra.  

Konicz é jornalista, nascido em 1973, na Polônia. Seu blog Konicz.info, ativo desde 2005, é especializado em notícias e análises sobre a Europa Oriental e o espaço pós-soviético a partir do ponto de vista da “crítica do valor” [Wertkritik]. Publicou, entre outros, O capital contra o clima. Como um sistema econômico destrói nossos meios de vida [Mandelbaum Verlag, 2020] e Fascismo no século XXI. Esboços da barbárie iminente [Heise Medien, 2018].

Eis a entrevista:

Tomasz Konicz, autor de Ucrânia: o “Grande Jogo”. A luta pelo poder entre o Leste e o Ocidente na crise global

Em suas análises sobre a Ucrânia a partir de 2014 e a escalada que levou à invasão russa, você define esse quadro não como um conflito entre esses dois países, mas como um conflito muito mais amplo e mais profundo entre o Leste e o Ocidente. Em linhas gerais, quais são então as causas da guerra atual na Ucrânia? Algum dos objetivos russos foi alcançado?


TK: A invasão da Ucrânia pela Rússia é simplesmente a evidência de que os objetivos geopolíticos da Rússia não foram alcançados depois da crise de 2014. A Rússia recorreu à violência, à violência militar, porque ela não foi capaz de alcançar seus propósitos por outros meios.

     A estratégia russa visava desenvolver e formar uma União Euroasiática, um grande poder geopolítico situado entre União Europeia e China – e a Ucrânia teria sido um membro crucial dessa União Euroasiática. A intervenção Ocidental na Ucrânia em 2014 visava interromper esse processo de formação de um grande poder geopolítico e militar que teria sido capaz de competir com a UE em pé de igualdade, e foi, até a invasão, bastante bem sucedida. As forças pró-Rússia foram derrubadas, as forças pró-ocidente estão no controle na Ucrânia, enquanto a Rússia anexou a Criméia e congelou a guerra civil no Donbass. E nenhuma União Euroasiática desafiará a UE.

     Então, num certo sentido, foi uma luta entre Eurásia, uma aliança em formação entre Moscou e Pequim, e o sistema oceânico de alianças dos EUA, que abrange os oceanos Atlântico e Pacífico. A Ucrânia faz parte do Ocidente ou do Oriente? Essa luta geopolítica e imperialista está dilacerando o país. Então, a guerra na Ucrânia deve ser entendida no contexto de uma luta pela hegemonia global entre China e EUA, que é em si mesma alimentada por uma crise profunda e fundamental do capitalismo tardio.

O que você chama exatamente de uma “intervenção ocidental na Ucrânia”?

TK: O Ocidente conseguiu derrubar o governo de Yaukovich, que pretendia formar uma aliança com a Rússia, usando forças liberais e fascistas em protestos violentos de uma semana inteira. Isso desencadeou a guerra civil e a intervenção velada e aberta da Rússia, incluindo a anexação da Criméia. Desde 2014 a Rússia tentava reverter as vitórias Ocidentais na Ucrânia por meios políticos e econômicos, mas sem sucesso.

Algumas análises apontam para um esvaziamento do papel da OTAN como um fator estratégico relevante ao longo das duas últimas décadas. Ao mesmo tempo, você definiu Putin como uma liderança que estava “contra a parede” na véspera da invasão. Isso diz respeito ao caráter defensivo ou de agressão da guerra. Qual é o papel da OTAN nesse conflito?

TK: Ambas as visões estão, até certo ponto, corretas. A aliança ocidental entrou numa crise de legitimidade, Europa e Estados Unidos estavam se afastando e a erosão da hegemonia norte-americana ameaçava o dólar. Sem o dólar americano como moeda de reserva mundial os Estados Unidos se tornariam um país profundamente endividado. Washington fará qualquer coisa para deter o declínio do dólar. A Europa e os Estados Unidos têm um interesse em comum em evitar a formação da alternativa euroasiática ou chinesa para erodir a dominação ocidental do sistema capitalista mundial. Depois da invasão, a aliança da OTAN foi reavivada e expandida. Então podemos argumentar que a invasão Russa da Ucrânia foi uma conquista tática de um objetivo americano: a erosão do domínio americano na aliança Ocidental foi ao menos temporariamente interrompida, a divisão entre Europa e Rússia, entre Berlim e Moscou, parece perdurar. Foi a crise interna, a sua crise de hegemonia, que levou os Estados Unidos a uma postura agressiva em relação ao problema da expansão da OTAN na Ucrânia.

     Porém, a mesma lógica se aplica – e isso é cada vez mais visível – à invasão russa. Foi a pressão interna que levou a Rússia a atacar a Ucrânia – e isso é característico das políticas imperialistas. O Kremlin enfrentou grandes insurreições em Belarus e no Cazaquistão que foram atribuídas nas mídias russas à subversão ocidental. E houve a guerra entre Azerbaijão e Armênia, na qual a Turquia apoiou abertamente e com sucesso uma invasão do território da Armênia. Isso ameaçou a hegemonia da Rússia no espaço geopolítico pós-soviético. A guerra contra a Ucrânia é, em suma, uma tentativa do Kremlin de manter o status imperial da Rússia na Eurásia – e isso é um sinal de fraqueza, uma vez que todos os outros meios falharam em interromper a erosão da influência da Rússia na região. Então, Washington escolheu uma postura agressiva na Ucrânia visando continuar erodindo essa posição hegemônica, para impedir a formação de um poder Euroasiático, e Moscou atacou a Ucrânia para evitar e reverter seu declínio no espaço geopolítico pós-soviético. Ambas são estratégias imperialistas agressivas. Escolha seu veneno.

A depender do campo ideológico, Putin aparece ora como aliado da extrema-direita na Europa, ora como alguém que pretende deter a expansão da OTAN e “desnazificar” a Ucrânia. Como você vê a liderança política do Kremlin e a sua relação com as diferentes correntes da política na Europa?

TK: À primeira vista, Putin representa ambas as coisas. Ele parecer ser um reacionário, pavimentando o caminho para o fascismo, que está ao menos afirmando lutar contra as forças fascistas. As evidências do apoio russo à extrema direita na Europa são esmagadoras. A Rússia está apoiando partidos de direita na França e o Kremlin tem excelentes conexões com forças de direita na Alemanha. Esse apoio não é apenas motivado por motivos geopolíticos, a fim de desestabilizar os países ocidentais, como estes fazem no espaço pós-soviético. A Rússia de Putin não é só autoritária, mas também profundamente reacionária, visa reconstruir a velha gloria imperial. Eu não chamaria a Rússia de fascista, mas esse país está em processo de “fascistização” – e o verdadeiro perigo reside nas forças que assumirão o controle quando Putin se for.

     Por outro lado, há forças fascistas na Ucrânia, principalmente no interior das Forças Armadas, que estão empenhadas em um confronto com Moscou. E essas forças foram um instrumento na derrubada do governo pró-Rússia na crise de 2013/2014 e na guerra civil que se seguiu. Na minha avaliação, porém, isso não é uma inimizade ideologicamente motivada. É antes um conflito entre dois nacionalismos diferentes. Para alcançar seus objetivos geopolíticos na Ucrânia, o imperialismo russo está apenas usando o fato de que o Ocidente apoiou e instrumentalizou os fascistas.

Em seus textos encontramos um uso frequente de analogias históricas com a dinâmica de conflito da época do imperialismo clássico, no final do século XIX, e com a ideia de um “grande jogo”, que remonta às disputas entre os impérios Russo e Britânico. Qual a importância do conceito de imperialismo hoje?

TK: Hoje, na era da crise sistêmica do capitalismo tardio, onde há populações supérfluas, especialmente no sul global, o sistema mundial vive a contração do capital, na qual failed states e economias quebradas levam às guerras civis e migração em massa. Então, o muro, a fronteira, fortificados para manter populações supérfluas do Sul à margem, é o símbolo dessa era do imperialismo. Os Estados competem para transferir as consequências adversas da crise na concorrência: por exemplo, via guerras cambiais, protecionismo, extração de excedentes, e agora por meio de guerras, como na Ucrânia. É uma escalada. Cada Estado que perde na luta imperialista na era da crise está fadado a se desintegrar. Imagine o Titanic, onde a primeira classe luta contra a segunda classe pelos poucos lugares restantes nos andares superiores, enquanto o navio está lentamente afundando – ou um iceberg derretendo, onde todos tentam ficar no topo o maior tempo possível: é isso o imperialismo na crise socioecológica do capitalismo. A longo prazo, ninguém ganha, um lado, o “lado vencedor”, pode apenas perder mais lentamente.

     Nesse imperialismo de crise mortal não se trata apenas da crise econômica, de montanhas de dívidas globais, que impõem estratégias econômicas orientadas para a exportação e o protecionismo. A crise climática já é um campo de batalha importante na geopolítica: a Ucrânia tem um solo muito fértil, está ficando mais valioso como preço geopolítico à medida que a crise climática se desenrola.

Você fala da importância de um amplo movimento imediato pela paz. Como isso se daria concretamente? Na Rússia, até as menores manifestações foram reprimidas com brutalidade. Vê alguma chance desse movimento ganhar força na Europa? Os protestos recentes em Bruxelas, que levaram 80 mil pessoas às ruas, segundo os organizadores do evento, apontam nessa direção? E qual é a perspectiva hoje no contexto da esquerda alemã para um movimento desse tipo?

TK: A necessidade de um amplo movimento pela paz surge do caráter que já mencionei da guerra na Ucrânia, que é um campo de batalha de lutas pelo poder do imperialismo de crise. Como eu disse, a crise empurra os poderes imperiais para o confronto, as contradições internas são superadas por expansões externas. Quanto mais a crise escala, mais aumenta o perigo de uma grande guerra imperialista, que poderia acabar com a civilização humana como tal, devido às capacidades destrutivas acumuladas no capitalismo tardio.

     E há um ponto central. O movimento pela paz deve corresponder à crise, deve ser também um movimento radical para a transformação do sistema em um sentido pós-capitalista. Caso contrário, é ineficaz e se degenera em uma ferramenta das forças imperialistas antagônicas (para a Rússia no Ocidente, para o Ocidente na Rússia).

     Então, é necessário um movimento amplo pela paz. Embora, eu seja cético no que se refere às condições práticas. Não vejo oportunidades para um movimento antiguerra na Rússia neste momento, no qual é cada vez maior e mais intensa a repressão contra as forças progressistas e de esquerda; mas posso imaginar que a situação poderia mudar, na medida em que guerra se arrasta e o Kremlin é forçado a mobilizar reservas para o esforço de guerra.

     No ocidente, especialmente na Alemanha, não há forças radicais que possam impulsionar a ideia de transformação. A discussão na esquerda alemã resume-se à mera reprodução do conflito: há forças da esquerda-liberal ou forças oportunistas, à esquerda dos “Verdes”, que apoiam a Ucrânia e a OTAN. E há marxistas ortodoxos, nacional-socialistas, e setores do “Linkspartei” [Partido de Esquerda], por exemplo, que apoiam Putin. É tudo bastante deprimente.

Um dos temas com mais destaque nos seus escritos é o contexto de crise no Leste Europeu e como esses países se tornaram um laboratório das correntes neofascistas. Poderia falar um pouco sobre a dinâmica de crise nessa região e as suas implicações.

TK: Eu não diria que se trata de um laboratório, pois ninguém planejou que o Leste Europeu se tornasse um solo fértil para extrema-direita e forças populistas. Há muitos Estados no leste e centro-leste da Europa onde já se alcançou uma hegemonia de direita: Rússia, Ucrânia, Hungria e também, em menor medida, Polônia. A erosão dos padrões democráticos na Ucrânia durante a guerra, o regime abertamente autoritário na Rússia – obscurecem o simples fato de que processos autoritários similares estão ocorrendo na Hungria e na Polônia, embora ainda não de uma forma tão dramática. Antes da deflagração da guerra, houve importantes confrontos de Bruxelas com Varsóvia e Budapeste no que diz respeito à erosão dos padrões democráticos nestes países.

     Essa região inteira tem um legado histórico de regimes autoritários, e isso se aplica também à época da dominação soviética e do socialismo de Estado soviético. Nunca houve um movimento de modernização cultura similar às rebeliões de 1968, como na Europa Ocidental. E houve profundas ondas de choque econômico e social depois do colapso do sistema soviético nos anos 1990. Na Rússia, por exemplo, há uma profunda conexão ideológica entre democracia liberal e declínio econômico, que nasce desse período de colapso da sociedade russa.

Por fim, gostaria de abordar um tema que é pouco estudado na América Latina e, talvez, em todo o Ocidente, que é a geopolítica do “espaço pós-soviético”. Não faltam notícias vindas dessa região sobre o agravamento da crise e sobre protestos violentos, além de conflitos militares mais ou menos “congelados”. Quais são os principais focos de tensão dessa região no “grande jogo” entre o Leste e o Ocidente?

TK: Essa região bastante complexa seria tema para toda uma nova conversa. Falando de maneira geral, o espaço pós-soviético é caracterizado pela ausência de modernização capitalista. Nenhuma das economias foi capaz de desenvolver indústrias competitivas no mercado mundial (a indústria militar russa é, ou era, uma exceção). A essa região restou a venda de seus recursos naturais, ou a queda na pobreza e migração (como em alguns Estados asiáticos centrais ou na armênia). A estratégia imperialista russa tem tudo a ver com o controle de óleo, gás e recursos naturais em função das tentativas fracassadas de modernização.

     A pobreza resultante e os regimes oligárquicos na maioria das sociedades pós-soviéticas, onde a riqueza é distribuída de forma bastante desigual, conduziu a um amplo descontentamento – e essas sociedades se abririam à intervenção estrangeira, caso não fossem mais ou menos autoritários ou até mesmo abertamente ditatoriais. Tivemos grandes revoltas em Belarus e no Cazaquistão, pouco antes de Kremlin tomar a decisão de invadir a Ucrânia.

     E há, claro, todos os conflitos militares que permanecem congelados depois do colapso da União Soviética. E alguns deles podem rapidamente se tornar um conflito bastante quente, como por exemplo, o conflito entre Armênia e Azerbaijão por Nagorno-Karabakh em 2020. Há algo similar se formando na Moldávia, onde a região desmembrada da Transnístria é controlada por separatistas russos – ela está localizado na fronteira sudoeste da Ucrânia e um dos objetivos de guerra do Kremlin parece apontar para uma ligação entre essa região e Odessa. No Cáucaso, a região separatista pró-russa do sul da Ossétia, que é parte da Geórgia, se esforça para se juntar à Federação Russa. A Geórgia tentou e fracassou na conquista da região em uma breve guerra de verão contra a Rússia em 2008. E não devemos esquecer de [Ramzan] Kadyrov, da Chechênia, que manda muitos batalhões armados para a guerra na Ucrânia. O elevado número de baixas pode levar à reativação dos movimentos separatistas e até mesmo a novas insurreições por parte de forças islâmicas.

Capa do livro que vem a ser publicado pela Consequência Editora

[1] Marcos Barreira é Professor de geografia e Doutor em Psicologia Social pela UERJ. É pesquisador e membro do conselho diretor da Agência de Notícias das Favelas (ANF). Pela Consequência, colaborou nos livros ANTISSEMITISMO E NACIONAL-SOCIALISMO: Escritos sobre a questão judaica, de Moishe Postone (2021), e A CRISE DO VALOR DE TROCA (2019) e A DEMOCRACIA DEVORA SEUS FILHOS (2020), de Robert Kurz.

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