OS DURADOUROS ENSINAMENTOS DA COMUNA DE PARIS

O dia 28 de maio, é a data da queda da Comuna de Paris, após dois meses de governo operário, criaram suas “próprias instâncias de governo”, em substituição ao “Estado burguês”, a primeira experiência histórica, que deixou suas lições, como todos sabemos, Viva a Comuna de Paris! O Blog da Consequência, por esse motivo, publica o artigo “Os duradouros ensinamentos da Comuna de Paris” de Atilio Bóron. O artigo foi originalmente publicado na revista Lutas Sociais n.25 – 26, 2011. Seu conteúdo é plenamente atual para auxiliar a reflexão sobre as experiências de governos de esquerda, e para a compreensão clara das “lições da Comuna de Paris”.

*Atilio A. Bóron

O tema de um governo proletário havia chamado à atenção de Marx e Engels desde os primeiros escritos políticos: o Manifesto do partido comunista, redigido no início de 1848, é uma prova disso. Mas nesta obra a visão é sumamente abstrata: a organização do proletariado como classe dominante. Ratificando pela enésima vez a íntima vinculação entre práxis histórica e desenvolvimento teórico, os fatos que tiveram lugar em Paris nesse breve lapso permitiram refinar significativamente a teoria marxista do Estado e da política. Porque, como fica claro em A Guerra Civil na França, o objetivo deste escrito é analisar a emergência real, concreta, de um novo tipo de Estado e não só de uma nova forma estatal capitalista, como se realizava, por exemplo, em O dezoito Brumário de Luís Bonaparte. É certo que tanto no Manifesto como em A Guerra Civil se postulava o desaparecimento do Estado e sua substituição por uma associação autogovernada de produtores livres. Só que no Manifesto aparecia como uma audaz antecipação teórica de seus jovens autores e na Guerra Civil era uma reflexão post festum, fundada em um processo histórico real. Em seus diferentes estudos sobre a política francesa, que Marx considerava como o lugar onde as lutas da classe operária havia alcançado seu mais alto nível de desenvolvimento, aquela havia comprovado como, sob diferentes formas do Estado capitalista – a monarquia absoluta, a república democrática, o bonapartismo – se produzia o sucessivo aperfeiçoamento da máquina estatal. Se bem que, tanto ele como Engels, tinham consciência da necessidade dessa máquina de opressão como passo prévio à autoemancipação do homem e o começo de uma verdadeira história da humanidade, mas ninguém tinha ideia precisa de como fazê-lo. Tiveram que esperar que a história oferecesse sua resposta em Paris, e tanto um como o outro tomaram boa nota disso.

Por outro lado, se nos textos juvenis de Marx e Engels a destruição do Estado era o ponto final de um longo processo revolucionário de construção de uma nova sociabilidade, a partir dos ensinamentos da Comuna ambos modificaram aquela concepção e coincidiram em assinalar que a destruição do Estado capitalista deve se iniciar de imediato, e que o êxito em tal empreendimento será condição indispensável para que, em uma fase ulterior, se concretize a tão assinalada extinção do Estado. Engels sublinhou com toda clareza em sua referida “Introdução”, ao escrever que “a Comuna teve de reconhecer que a classe trabalhadora,  uma vez no poder, não podia continuar a operar com a velha máquina estatal; que essa classe trabalhadora, para não tornar a perder o poder que acabara de conquistar, tinha de, por um lado, eliminar a velha maquinaria opressora até então usada contra ela, enquanto que, por outro lado, tinha de se proteger de seus próprios delegados e funcionários, declarando-os, sem qualquer exceção, como substituíveis a qualquer momento” (Engels, 2011: 195-196).

Lênin insistiu em diversos escritos sobre a importância desta passagem, contra os oportunistas que, tanto ontem como hoje, pensam que se pode transformar o mundo simplesmente apoderando-se da máquina estatal e utilizando-a para fins distintos para os quais foi criada no seio da sociedade burguesa. A história tem refutado uma e outra vez essa crença. Um dos casos mais ilustrativos tem sido a experiência da Unidade Popular (1970-1973) que tratou de utilizar o velho Estado burguês para lançar um ambicioso programa de transição ao socialismo. Tal como o reconheceu o próprio presidente Salvador Allende, nem os mecanismos institucionais do Estado nem seu pessoal obedeciam às ordens emanadas do Palácio de la Moneda. É que, como produto social, o Estado capitalista não havia sido desenhado para transformar o mundo senão para reproduzi-lo ad infinitum. As “Missões” e os “Conselhos Comunais” na Venezuela, o Estado Plurinacional e o reconhecimento dos órgãos de participação e decisão das comunidades indígenas e camponesas na Bolívia e as novas modalidades de gestão do governo do Equador são indícios de que novos governos de esquerda na região tomaram nota da experiência da Unidade Popular e compreenderam que não se pode governar com o velho Estado se é que querem produzir transformações de fundo nestas sociedades.

Em  seu texto,  Marx introduz  uma importante distinção  ao assinalar, a propósito da gestão cotidiana do governo da Comuna, que “ao passo que os órgãos meramente repressivos do velho poder estatal deveriam ser amputados, suas funções legítimas seriam arrancadas a uma autoridade que usurpava à sociedade uma posição proeminente e restituídas aos agentes responsáveis dessa sociedade” (Marx, 2011: 58). Como consequência, a Comuna materializa uma reapropriação social das funções expropriadas pelo Estado, dando nascimento a “um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho” (Marx, 2011: 59). Contrariamente ao que assinalam os críticos do marxismo, que a acusam de pretender funcionar sem Estado em uma sociedade tão complexa como a atual, os ensinamentos da Comuna demonstram que a organização política da sociedade pode se construir seguindo lineamentos distintos e alternativos ao Estado: manutenção e expansão das suas legítimas funções (abastecimento de insumos básicos, provisão da saúde, educação, moradia e previdência social, defesa diante das agressões externas etc.), uma vez que as repressivas haviam sido amputadas. Não se pode esquecer que o Estado, todo Estado, enquanto existir, é uma ditadura de uma classe ou de uma aliança de classes que oprime e explora o resto da sociedade. A existência das classes sociais requer do Estado sua contraparte necessária. Que esta ditadura, entendida como o predomínio sistemático (e, em certas ocasiões, excludente) dos dominantes sobre os dominados, pode às vezes apelar a métodos “democráticos” de gestão, ou a fórmulas consensuais de manipulação do processo político, o que não lhe retira o caráter ditatorial no sentido acima mencionado e que os interesses das classes dominantes prevalecem invariavelmente. Foi em virtude disto que a experiência histórica da Comuna permitiu a Engels exclamar, no final de sua “Introdução” escrita vinte anos depois do opúsculo de Marx, que essa “forma política enfim descoberta” não era outra coisa senão a ditadura do proletariado. No último parágrafo desse brilhante texto, o amigo de Marx afirma: “Pois bem, senhores, quereis saber como é esta ditadura? Olhai para a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado” (Engels, 2011: 197). É preciso dizer que, sem dúvida, Marx nunca utilizou essa expressão para se referir à Comuna. Em sua correspondência, dez anos depois, assinala que o heroico levantamento da classe operária parisiense não podia chegar a instaurar a ditadura do proletariado. Para isso, era preciso que a insurreição operária ocorresse em escala nacional e contasse com uma direção socialista capaz de atacar os fundamentos econômicos da ordem vigente, coisa que a Comuna não fez. Em um parágrafo da Guerra Civil, Marx assinala que “as medidas financeiras da Comuna, notáveis por sua sagacidade e moderação, só podiam ser aquelas compatíveis com a situação de uma cidade sitiada” (Marx, 2011: 64). Engels observa que esta debilidade da Comuna, unida às de sua direção, compartilhada pelos “blanquistas” e os socialistas adeptos de Proudhon, com poucos socialistas marxistas (quer dizer, comunistas), é responsável por um dos mais significativos erros de toda a experiência popular: “O respeito sagrado com o qual” – diz Engels – “se permaneceu respeitosamente diante das portas do Banco da França (…) nas mãos da Comuna (…) valia mais do que dez mil reféns” (Engels, 2011: 194).

Quais foram os traços concretos que assumiu a experiência da Comuna? Estes são os principais que Marx enumera em sua obra:

(a) Supressão do Exército. O primeiro decreto do governo da classe operária teve por objetivo liquidar o Exército e substituí-lo por uma Guarda Nacional integrada majoritariamente por operários. Em outras palavras: a Comuna reivindica o povo em armas, revertendo uma expropriação que se havia produzido séculos atrás.

(b) Revogação do parlamentarismo, como deformação da genuína representação popular e da perversão dos parlamentos, convertidos em lugares onde se desenvolvem um estéril charlatanismo, e sua substituição por novos órgãos de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo, baseados no sufrágio universal, e cujos representantes são, em sua totalidade, revogáveis e diretamente responsáveis por suas ações diante de seus mandantes. Não se trata, portanto, de abolir as instituições representativas, senão de garantir o controle delas pelos “de baixo”, evitando a autonomização dos representantes com seus privilégios e imunidades.

(c) Supressão da burocracia, corpo estranho e parasita que se apropria do poder político que pertence ao povo. Em seu lugar, criação de um corpo de funcionários que desempenhará seu trabalho em troca de um salário de operário, responsável diante do povo que poderá destitui-lo mediante simples procedimentos. Desse modo, evitava-se a recriação de uma burocracia convertida em poderosa força social que poderia frustrar as iniciativas populares. Por outro lado, com a supressão do Exército e da burocracia, obtém-se o que foi o sonho de todas as revoluções burguesas: um governo barato.

(d) Finalmente, a Comuna propunha a substituição da unidade da nação baseada no centralismo burocrático e militar pela unidade de comunas livremente integradas como associação de produtores. Todos os delegados são revogáveis e o governo central deteria um mínimo de funções (Marx,2011: 58).

Como se pode observar, os traços políticos definidores da Comuna constituem, segundo Marx, a antítese do Estado capitalista e são, ao mesmo tempo, o início do seu desaparecimento, de sua reabsorção pela sociedade civil organizada como uma comunidade de produtores autogovernados. Em consequência, a experiência da Comuna não se propunha a fazer um Estado melhor, mas a começar a construir um tipo de organização política distinta, definitivamente pós-estatal na medida em que estava tendencialmente orientada a colocar fim à opressão de uma classe sobre as demais.

A questão da ditadura do proletariado, tão abordada e mal interpretada (na mais das vezes premeditadamente), ficou apenas esboçada nos textos de Marx e Engels sobre a Comuna. Ampliando a brevíssima alusão ao tema que abordamos mais acima, o que queremos deixar claro é que ainda sob o primado das instituições da democracia liberal, o caráter ditatorial do Estado segue plenamente vigente. Isto de nenhuma maneira significa que, para o pensamento e a prática marxistas, sejamos indiferentes diante dos contrastes entre os métodos ditatoriais ou democráticos de governo: Videla não é igual a Menem, ou Pinochet a Lagos, ou Geisel a Rousseff, embora em todos os casos o Estado capitalista imponha a ditadura do capital, às vezes por meios “democráticos” e outras por métodos próprios do despotismo político. Por isso é decisivo que a caracterização da ditadura seja feita não somente ao “método de governo” (evidenciada pela clara primazia dos aparelhos repressivos), mas em dois níveis distintos e complementares: o estrutural, que remete ao caráter de classe do Estado e, em consequência, ao sistemático privilégio das políticas que favorecem à acumulação do capital e à exploração dos trabalhadores; e o da metodologia de governo, que tem a ver com as formas sob as quais se processa o predomínio da classe dominante. Esta distinção é muito importante para evitar cair na armadilha do fetichismo próprio da ideologia burguesa que nos fala de democracia e de liberdades que, em termos reais, só existem no papel. Que tipo de democracia é essa na qual os interesses fundamentais das classes dominantes jamais se colocam em questão? Ou uma na qual a cidadania vota por uma política e o governo faz exatamente o oposto ao mandato popular? Se a democracia é, segundo Abraham Lincoln, “o governo do povo, pelo povo e para o povo”, como conciliar esta definição com governos que, por métodos violentos ou por meio de táticas “democráticas”, perpetuam e acentuam a exploração e a opressão dos trabalhadores?

Outro ensinamento da Comuna é a invalidação das concepções instrumentalistas do Estado, que o concebem como um simples instrumento, técnico e neutro, como um martelo, que empunhado pela mão proletária pode construir um mundo pós-capitalista. A realidade demonstra que o Estado é a coagulação institucional e legal de uma correlação de forças, o resultado da luta de classes, e que tanto a sua estrutura como a burocracia, as normas, as instituições e o ethos estatal são produtos daquele enfrentamento. O Estado capitalista, por consequência, independente de quem ocupa os altos cargos do aparelho estatal (ou das suas intenções) sempre tenderá a reproduzir as relações sociais capitalistas, embora o governo desse Estado se encontre nas mãos de uma coalizão de esquerda. Ainda nestas circunstâncias, o Estado capitalista, administrado pela esquerda, sustentará o caráter de mercadoria da força de trabalho e procurará mercantilizar todas as relações sociais, com as quais o capitalismo se reproduzirá indefinidamente. Inclusive nos casos de aumento de sua autonomia relativa, como demonstrado sobremaneira pelo fascismo e pelo bonapartismo, o Estado capitalista sempre reproduz a dominação do capital. Por isso, coalizões reformistas ou sinceramente revolucionárias que não comecem de imediato a destruir o velho Estado e a substituí-lo progressivamente por outro de novo tipo, que reflita a nova situação sociopolítica, estão destinadas ao fracasso. A mera lógica de funcionamento do aparato estatal sempre tende à direita, à conservação da sociedade atual; e os governos, mesmo os de esquerda, dificilmente poderão neutralizar esta tendência conservadora se não contarem com uma poderosa mobilização e organização popular dos “de baixo”, das ruas, que os impulsionam em direção contrária. Por isso, são Estados capitalistas, o que quer dizer que por sua estrutura e o seu ethos, essa instituição reproduzirá incessantemente a dominação do capital, com indiferença da origem social ou orientações ideológicas dos que ocupam as “alturas” do aparelho estatal. A destruição do Estado significa, em termos concretos, colocar em marcha uma agressiva política de “desmercantilização”, por um lado, recuperando a condição de direitos cidadãos à saúde, à educação, à previdência social, à moradia, ao lazer e, em geral, “desprivatizando” e “desmercantilizando” tudo o que foi privatizado e mercantilizado com a instauração do neoliberalismo e, ao mesmo tempo, como ensina a Comuna, instituindo fortes mecanismos de controle popular sobre os governantes, os representantes do povo e a burocracia, pela via da revogação de mandatos, dos referendos revogatórios periódicos e frequentes, pela instituição dos orçamentos participativos, da igualdade salarial e da abolição de todos os privilégios e imunidades que tradicionalmente desfruta a classe política e a burocracia estatal.

* Cientista Político e docente do Programa Latinoamericano de Educación a Distancia en Ciencias Sociales; Professor Titular de Teoria Política da Universidad de Buenos Aires e Pesquisador Superior do Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología (CONICET). End. Eletrônico: aaboron@yahoo.com.ar

** Tradução de Eliel Machado (Deptº. Ciências Sociais/UEL).

*** A imagem de destaque é a Rue de Rivoli, em Paris, após a supressão da Comuna em maio de 1871.

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